Naquela primavera, o amor estava no ar e Edmilson resolveu convidar a menina dos seus sonhos, Júlia para tomar um sorvete na pracinha da cidade interiorana onde comiam mais pó que feijão no seu dia-a-dia. Naquele dia, Júlia colocou seu melhor vestido, se penteou e arrumou o cabelo. José que era um sujeito esperto quis ser romântico, pois tinha procurado como saber “conquistar uma mulher” no YouTube. Embora ele preferisse chocolate mesmo, quis agradar ao máximo e pediu um milk shake de morango porque, sei lá, vai ver ela queria combinar com sua camiseta, já que amava cor de rosa.

— ‘Cê não vai pedir outro?

— Depois, quer tomar junto?

Ela sorriu e consentiu meneando a cabeça. Ele tirou seu canudinho rapidamente do plástico, mas ela tinha dificuldade com estas embalagens que parecem feitas para especialistas e se sua mão estiver um pouco gordurosa ou suada esqueça, peça um serrote porque não vai conseguir abrir seu invólucro. Mas o garoto atento logo tomou gentilmente seu canudinho e tirou-o para ela que sorriu meio envergonhada e feliz por estar na frente de um homem (ela o via assim) tão atencioso.

Com a cabeça levemente inclinada, Júlia passou um filme do futuro de sua vida rapidamente entre seus olhos, uma poesia, castelo… Não, não! Um gramado lindo, céu azul com nuvens em formato de algodão, margaridas e trinados de pássaros que parecem emoldurar o quadro do beijo que daria em seu futuro esposo rodeada de seus dois filhinhos…

FFFFFFFFFFFFFFFFFUUUUUUUUUUUUUUUUURRRRRRRRRRRRRRRRRRRRPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPP!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

— Quê? O que foi isso? O QUE FOI ISSO!

Júlia vê diante de seus olhos a espuma rosácea do que um dia foi um copo de milk shake de morango. Não há mais nenhum milk shake. Na sua ansiedade por tocá-la, Edmilson quis pular rapidamente aquela etapa e sair dali com a moça, diretamente para a praça, naquele banquinho reservado das atenções pondo fim ao conteúdo daquele copo. Só que quando se divide o MESMO copo, a ansiedade joga contra todo e qualquer treino de romantismo on line. A garota viu seus sonhos e ensaio de paixão evaporar ali na sua frente, encarnada em um homem que agora julgava um ser mesquinho, fútil e egoísta. Edmilson perceberia algo errado cinco minutos depois, quando tentou tocar sua mão que se retraiu imediatamente. Como uma flor que só desabrocharia na primavera seguinte, mas não para a mesma abelha.

Mas não se preocupem, a garota vai ficar bem e, de certa forma teve uma experiência enriquecedora, ficou bem mais cautelosa. Infelizmente nem todos podem dizer o mesmo…

O que fez nossa garota se desiludir e agir impedindo que seu pretendente segurasse sua mão não foi nenhuma droga de milk shake, mas sim um valor, caro a ela que pode ser entendido como gentileza, cortesia, cavalheirismo, um sacrifício pessoal que alguns chamam de amor. No entanto, nem sempre a decepção com a sucção alheia é assim tão moralista. Em outros casos ela é intrinsecamente utilitária. Um dos motivos pelos quais Saddam Hussein decidiu ir à guerra contra o pequeno vizinho Kuwait era sua alegação de que estava sendo roubado, da mesma forma que Edmilson fez com Júlia: sorvendo mais. Diferente de um bolo ou arroz doce em que podemos baixar a lâmina de uma faca em linha reta dividindo equanimemente o conteúdo de um pote, os líquidos necessitam de uma sucção regular por parte dos detentores da mesma jazida que, caso não saibam, estava ali muito tempo antes das fronteiras nacionais terem sido criadas no Oriente Médio. Enquanto estas têm algumas dezenas de anos, séculos no máximo, as formações minerais têm centenas de milhões de anos no caso de hidrocarbonetos como o petróleo ou bilhões, em se tratando de minerais metálicos.

Imagine que quando o petróleo começou a ser extraído em larga escala nos EUA, um problema surgiu e foi exatamente o do nosso casal: como dividir um produto que é líquido entre as propriedades? Seguindo a tradição do direito anglo-saxão de usar casos preexistentes para produzir outra série de jurisprudências e novas leis, a legislação de caça foi adotada como parâmetro. Isto é, em temporada de caça, se um veado está na sua propriedade, você tem o direito de abatê-lo, mas se ele pular a cerca pode esquecer, você não pode ir atrás dele. Este passa à propriedade, ainda que temporária do vizinho, caso queira caçar. No caso do petróleo, você poderia então encher sua propriedade de torres extraindo o ouro negro, ainda que o crescimento delas fosse muito mais rápido do que a produção mineral em si. Assim, nos anos 30, o Texas tinha um aumento anual de 10% de produção para 300% de instalação da infraestrutura. Detalhe que estas eram instaladas, prioritariamente, junto às cercas, pois mesmo que o bolsão maior estivesse no centro de sua propriedade, todos assim procediam para “roubar” o petróleo do vizinho. Só que todos assim procedendo se produzia um equilíbrio onde ninguém, de fato, tinha sua cota tomada. Racional, não é mesmo? Sim, quando se trata de um país como os EUA e dentro de suas fronteiras e em um país onde, diferente de outros países, o subsolo é privado e não estatal.

Mas e como faríamos se uma jazida, constituinte da maior reserva mundial situar-se entre dois ou mais países, cuja história beligerante levou a sua separação, com direito à influência externa e, ainda por cima, um deles estava sob forte crise após grande desgaste com outro país vizinho por uma nesga litorânea rica em petróleo? Pensou em Iraque, Kuwait e Irã sob influência dos EUA, da Europa e a antiga URSS acertou. Em 1991, quando o Kuwait foi invadido por Saddam Hussein sob este pretexto, o país acabara de sair de uma guerra contra o Irã insuflada por países inimigos deste. Apesar de aplacar os ânimos da Revolução Iraniana dando um certo sentido de vitória aos EUA que queriam o país enfraquecido para o controle do Golfo (com a maior reserva mundial), o Iraque mesmo não logrou seus objetivos sem avançar um milímetro em Chat-el-Arab, o litoralzinho na boca do Golfo (chamado de Árabe para os árabes, Pérsico para os iranianos). Centenas de milhares de homens mortos, perdas de reservas, gasto de armamentos, destruição do ambiente etc. pareciam dar a Saddam uma perfeita justificativa para avançar sobre o Kuwait que teimava em se opor a sua estratégia de retenção da oferta da produção (para que se aumentassem os preços) junto à Opep. O Kuwait, importante aliado ocidental ganhava fazendo o contrário: vendendo mais e mais barato na concorrência com os primos enfraquecidos no Golfo.

Esta razão utilitária não fez Saddam chorar como Júlia, mas aproveitar para recuar atacando vizinhos do sul (xiitas que se opunham ao seu governo e eram apoiados pelo inimigo, Irã) quando afugentado por George H. W. Bush. Doze anos depois viria a ser caçado pelo filho, George W. Bush em sua guerra preventiva criticada pelo velho establishment americano, mas não pela nova camarilha neoconservative que achava legítimo moldar o mundo antes de ser provocado. Em tese, amoralmente falando, eles estavam certos, não fosse por um detalhe: não se conquista o território só com hard power. E para suprir um poder que era Saddam sem com isto deixar um vácuo tem que se administrar diversas facções, como hoje competem (xiitas, sunitas, curdos, aliados vizinhos como o Irã, Síria, Turquia, Israel, Arábia Saudita etc.).

Bem, a história é longa e está longe de terminar, mas quando tomar milk shake com a namorada lembre-se que por algo semelhante muita gente não teve a mesma sorte. Enfim, #FelizDiaMundialdoPetróleo !!!

 

Anselmo Heidrich

2017-09-26